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O Meu Amor

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Paulo Valladares, Professor e Bacharel em Letras

“O Meu Amor” / Composição: Chico Buarque

O meu amor tem um jeito manso que é só seu

E que me deixa louca quando me beija a boca

A minha pele toda fica arrepiada

E me beija com calma e fundo

Até minh’alma se sentir beijada. Leia o texto clicando aqui.

O meu amor tem um jeito manso que é só seu

Que rouba os meus sentidos, viola os meus ouvidos

Com tantos segredos lindos e indecentes

Depois brinca comigo, ri do meu umbigo

E me crava os dentes

Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz

Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz

O meu amor tem um jeito manso que é só seu

Que me deixa maluca, quando me roça a nuca

E quase me machuca com a barba mal feita

E de pousar as coxas entre as minhas coxas

Quando ele se deita

O meu amor tem um jeito manso que é só seu

De me fazer rodeios, de me beijar os seios

Me beijar o ventre e me deixar em brasa

Desfruta do meu corpo como se o meu corpo

Fosse a sua casa

Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz. Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz

Obra magistral de Chico Buarque, a produção textual acima, notadamente literária, perfaz uma trilha em que elementos vários da língua entram em harmonia para a produção discursiva. Para isso, organizam-se em planos diferenciados:

SINTÁTICO – Neste nível, as estruturas concretizam um sujeito – MEU AMOR – a quem se atribuem todas as ações; como contraparte, note-se a reiteração de um objeto – materializado sob a forma ME – pelas estrofes. Fica-se a primeira impressão do texto; a de um eu-lírico feminino que se assujeita às condições de “uso” do MEU AMOR.

LÉXICO-SEMÂNTICO – Confirmando a hipótese anterior, consagram-se dois campos semânticos pelo texto, cada um dos quais, respectivamente, associado às noções de sujeito e objeto:


SUJEITO

tem um jeito manso que é só seu

me beija a boca

rouba os meus sentidos

viola os meus ouvidos

brinca comigo

ri do meu umbigo

crava os dentes

me deixa maluca

me roça a nuca

quase me machuca

pousa as coxas entre as munhas

me faz rodeios

me beija os seios

me beija o ventre

me deixa em brasa

desfruta do meu corpo


OBJETO

boca

pele

ouvidos

umbigo

nuca

coxas

seios

corpo

louca

arrepiada

beijada

maluca

Pelo que se vê, ao sujeito estão relacionadas a APROPRIAÇÃO DAS COISAS – afinal, a mansidão lhe é inerente, lhe pertence (“jeito manso que É SÓ SEU”) -, a FONTE DAS AÇÕES – são verbos as palavras que a ele se vinculam -, a VIOLÊNCIA – valores como machuca, crava, rouba, viola o comprovam! -,ao passo que ao objeto associam-se as idéias de COISIFICAÇÃO (note-se que é apresentada uma visão utilitarista do corpo feminino: é o lugar pra servir!), PASSIVIDADE (repare-se que, ao contrário das estruturas sintáticas com verbo na voz ativa, relacionadas ao sujeito, as formas beijada e arrepiada aludem às estruturas passivas que, gramaticalmente, evocam a noção de “paciente da ação”) e DESCONTROLE (adjetivos como louca, maluca o confirmam!).

ESTILÍSTICO – FÔNICO

Sendo uma produção poética musicalizada, é óbvio que o compositor, no processo de produção acima, valeu-se dos aspectos sonoros da melodia para que, através deles, pudesse comunicar ou promover as sugestões desejadas.

No caso em questão, percebemos que os versos, quando oralizados, são fracionados em grupos fônicos (o meu amor/tem um jeito manso/que é só seu). Considerando-se que tal expressão se faça por intermédio de um eu-lírico feminino, de existência rompida, fragmentada (observe-se, a todo instante, que o corpo da mulher, como espaço de apropriação, é separado!), não nos surpreende que o aspecto fonético se concretize de modo a testemunhar, enquanto forma, tal conteúdo.

O que se conclui, ainda que de forma parcial, é que, utilizando artisticamente o material lingüístico (donde se designá-lo por Literatura!), o texto acima,retrata, mediante um jogo verbal, um embate discursivo em que a voz da mulher, silenciada seja nas estruturas sintáticas, veja no vocabulário etc é abafada pela hegemonia do homem.

Resta saber se, dona dessa fala que se submete, que aceita os ditames do outro, ela não é o principal agente de manutenção desse status quo…


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